Verso e reverso de uma medalha de guerra

Tremem minhas mãos neste momento,
A voz que chama tem um timbre ácido...
O espelho frente aos olhos refletindo as cores
De uma bandeira linda que empunhei sem medo.

Não escuto nada, além desses trovões de guerra
E tambores surdos ritmando os passos...
Cavalhadas loucas num lançante abaixo
E escaramuças plenas de paixão e terra.

Quais ferimentos me castigam mais?
Do corpo, da alma, da lembrança?
Não sei dizer o que me encurrala...
Os talhos feios que guardei no couro
Ou os tormentos que inscrevi na alma.

De tudo isso, me restou um dote,
Um honraria, por haver peleado...
Dos tantos golpes de uma adaga fria
O grande prêmio se mostrou um dia
Numa medalha de metal dourado.

Honra ao mérito, está escrito na sua fronte...
Honra ao mérito, frase tão singela...
Honra ao mérito aos homens de coragem
Que construíram pátria, que conquistaram sonhos,
Desaguando história pelos rios do tempo.

Honra ao mérito, está escrito no metal...
Lindo seria, não representasse golpes,
Não sacrificasse vidas, não recompensasse feras...
Fui um dos que lutaram, que sonharam,
Que sofreram a dor mais aguda
De fazer o certo da maneira errada.

Lutar pra construir nações,
Lutar pra defender ideais...
Lutar pra garantir seu chão,
Lutar pra encontrar a paz.

Necessário talvez, mas tão tristonho...
Que preço alto me cobrou a vida,
Que jeito amargo de buscar um sonho.

Honra ao mérito está escrito na medalha...

Terá honra em matar, mesmo de frente?
Terão mérito o chumbo e a criolla
Se os inimigos que enchemos de peçonha
Fora os lenços de outra cor, são nossa gente?

Honra ao mérito, no prêmio que rebrilha...
Antes fosse conquistado com ternura...
Honra ao mérito por saber semear doçura
E não por sangue derramando nas guerrilhas.

A medalha queima em minhas mãos cansadas
Como se o peso de toda a história recaísse em mim...

Mas a esperança não chegou ao fim...
Olho para os lados, vejo coisas belas,
Ginetes buenos com seus potros ágeis,
Moças risonhas a enfeitar janelas.

E esta medalha, o que fazer com ela?

Jogo a medalha rumo ao céu, e junto dela
Todas as dores que me cortam fundo...
Adeus às chagas que colhi no mundo,
Adeus às sombras que me desesperam.

Honra ao mérito, esperança remoçada!
A mão de um anjo fez do meu lamento
Mais uma estrela pela madrugada.
Honra ao mérito, ecoa em meu destino,
Buscando alento pra um perau malino
De uma medalha de ilusão dourada!!

Um sonho e nada mais

Espalhou-se na madrugada seu olhar,
como campeando os motivos
dos tantos rastros deixados,
dos retratos apagados
de quem foi, pra não voltar...
Renasceu na luz de um fogo antigo,
pela estranha benção, ou castigo
de querer, sem alcançar...
De lutar pela paixão de um sonho
e nada mais...

O cavalo, os arreios, as lonjuras,
noite escura, erva buena, imensidão...
Alma de estrelas abraçando o tempo,
tantas esperas retoçando o peito
que já faz tempo, ganhou a liberdade
enfrentando as solidões e tempestades
pela paixão de um sonho
e nada mais.

Campeiro sim, correndo as sesmarias
de pago em pago, recortando os mapas...
qual uma nova incursão farrapa
buscando um naco de dignidade
pelas distâncias do seu próprio chão,
que ainda existem homens de verdade...
que ainda existe fé no coração.

Um ranchinho, já faz anos,
mal se lembra;
A paz, uma flor, uma razão,
e a clara lua do olhar da prenda...

Depois a estrada, a poeira, o infinito
que tomou por seu sem pensar,
atrás de algo que julgou perdido
em algum avesso incerto
das trilhas gastas que compõe o mundo,
ou além de cada novo passo
que estradeia firme, sem jamais voltar.

Espalhou na madrugada seu olhar
com a mesma febre do furor gaudério
que gravou seu nome na figueira antiga,
guardiã dos tempos que vagueiam sós.
Matizou um viver tão diferente,
sem injustiças e desigualdades,
ceifando a fúria das razões covardes
que roubam pão e oferecem pó.
Há tantos retirantes neste tempo,
já descrentes de paz e divindade...

Alguns deixando as cruzes da cidade,
alguns deixando a fome desses campos,
entregues às agruras do destino
que por maula, lhes negou a sorte.

Mas ele não se entrega, ainda resiste,
talvez não mais com o braço firme e forte,
mas com a mesma coragem e tutano
de escrever a sua própria história...
Somando mais derrotas que vitórias,
mas por certo a história de um valente.

Horizontes...
Ah, horizontes são pequenos pra quem nunca pára,
querendo mais do que a visão alcança...
Alimentando a sublime esperança
de encontrar o ouro puro das searas
que esperam ricas num confim do mundo,
dando fortuna aos que souberam crer.

Filhos não teve, ao menos que soubesse...
Deixou raízes já quase desvalidas,
nesta coragem de pechar a cida
que às vezes fecha as portas pra o cristão,
e faz brotar no mais dócil coração
indagações, revoltas, temporais...

Firma o olhar na madrugada fria
numa feição misto futuro e nostalgia,
calando as dores que machucam fundo,
buscando um amanhã bem mais fecundo
co'a paz de quem se foi na ventania
pela paixão de um sonho,
e nada mais!!!

Últimos carreteiros

Bão sou as rugas e os cortes
Que a vida marca em meu couro...
Sou bem mais que algum lamento
À beira deste fogão.
Meu olhar revoa ao longe,
Muito além dessa fumaça...
Além da nuvem que passa
No ventre da imensidão.

Meus anseios vêm de longe,
De muito além desta era...
São juntas de bois brasinos
Cruzando tempos e estradas.
Os sonhos são santa-fé
Quinchando carretas velhas,
Que povoam meus silêncios
E o fundo dessas volteadas.

São tantos eixos rangendo,
São tantas rodas girando...
E a sina de carreteiro
Vai repetindo:-Até quando?
São tantos, tantos caminhos
Plenos de pó e atoleiros
E um manti de soledades
Mais largo que o pampa inteiro.

O pampa é um céu pra quem sonha
Nas asas de uma carreta...

Miro na volta de manso...
Outras almas também sonham
O mesmo sonho que eu;
Esteios de um tempo velho
Em cada olhar resistente,
Pechando a vida de frente
Sem qualquer sombra de adeus.

O fogo busca os silêncios mais fundos
Que nossas almas remoem inquietas...
E faz dos olhos porteiras abertas
Pra os nossos sonhos ganharem o mundo.

E cada rosto se faz um espelho
Onde as lembranças, a pouco caladas,
Trazem um tempo repleto de estrelas
E uma carreta de luz por sinuelo.

O fogo faz que devora
Mas na verdade acarinha...
Há um ranger que vem de longe
Alimentando o rodar
Do eterno ciclo da vida.

Quem sabe o mundo girando
Seja apenas uma roda
Da carreta mais bonita
Que Deus Pai idealizou.

A vida passa e repassa,
O mundo segue girando,
A inquietude picaneando
E a sina de carreteiro
Ainda repete:-Até quando?

Até quando Deus quiser
E Deus sempre há de querer...
Não me falem de passado
Quando eu falo do presente...
Do meu sangue, da minha gente,
Da minha noção de alma.

Sou filho de carreteiro
Meus companheiros também...
E não me venham, doutores,
Com patacas e motores
Que de estradas e de amores
Nós sabemos muito bem.

Talvez não sejamos fortes
Os verdadeiros heróis...
Mas o que somos e amamos
Nem mesmo o tempo destrói.

O mundo corre, se apressa...
Nós seguimos devegar;
E assim enxergamos coisas
Que muitos, sempre correndo,
Não tem tempo de cuidar.

Como a vida é mais bonita
Pra quem sabe perceber
A beleza que há na vida!

Os resmungos da carreta
Talvez sejam meus também...
Eles nos contam segredos
A cada nova jornada.
Pra que pressa? Temos tempo...
Todo o tempo da existência...
Os bois seguem no compasso
Que marca o meu coração.

Meu pensamento se eleva...
Procura os olhos de Deus.
Vertendo luz entre as trevas;
Toda essa luz que conserva
Tão viva a nossa missão...

Minha carreta é meu templo
E a estrada, minha oração!

Todos os ventos

O coração que nos leva pulsa forte
E mostra em seu sangue porque veio...
Porque se inscreveu nestes silêncios
Que marcam suas pegadas pela areia.

O coração que nos leva tem recados
De um tempo que não quis ficar pra trás
E trouxe pra este tempo seus guardados,
Bebendo dos seus próprios mananciais.

Não é de sonhos miúdos
Que um povo molda sua argila
E redesenha seus mapas...
Não é com brisas esparsas
Que a vida mostra sua cara
E impõe sua condição.
São sonhos que surgem plenos
Com sentimentos extremos,
Com toda a fibra da alma;
Mostrando que pela história
Só se conquista a vitória
Com as armas do coração.

Nós somos todos os ventos
Que cumprem velho ritual
Num berço de gauchismo
Plantado no litoral.

Já faz um século e meio
Que nós te vimos nascer...
Tenteando os primeiros passos
De uma história a florescer.
Te vimos ganhar o mundo
Campeando luz e esperança
Porque, Conceição do Arroio,
Apesar de tantos sonhos
Ainda eras criança.

Os memoriais que guardamos
Em nossos itinerários
Fazem parte do inventário
Que pelo tempo somamos;
Te vimos, ano após ano,
Te vimos, dia após dia,
Escrever rumo e magia
Nesta terra em que ventamos.

Há cento e cinqüenta anos
Nós vimos a Freguesia
Se apartar de Santo Antônio, .
Ganhar o nome de vila.

O pássaro ganhou plumas
As plumas viraram asas...
E o tempo, que é ferro em brasa,
E não dá vau nem perdão,
Por certo abriu seus caminhos
E acolheu com carinho
Os teus vôos, Conceição!

Os anos foram passando
E tu seguiste de pé...
Somando Torres, Palmares,
Logo depois Maquiné.

Mudaram distritos, comarcas
Mudaram as ordens, as leis...
Provaste sangue e mortalhas
Na guerra de vinte e três.
Mas nada mudou teus sonhos
Que pealo nenhum desfez.

Nós lembramos, Conceição,
Quando deste o coração
Em verdadeiro ofertório!
E com as bênçãos de Deus,
Em honra de um filho teu
Te batizaram Osório!

Osório! Disse o mundo aos quatro cantos,
Tão forte que sua voz ainda ecoa
Nas águas inquietas do oceano,
No espelho cristalino das lagoas.

Vão cento e cinqüenta anos
E nós seguimos passando...
Bailando com os cata-ventos,
Girando, sempre girando.

E continuamos ventando
Pelo correr dos teus dias...
Osório de tantos sonhos,
Palco de canto e poesia.
Do verde manto dos morros
Tantas asas coloridas,
Contraponteando teus vôos
Pelas lonjuras da vida!

Hoje os novos cata-ventos
Não são somente um girar...
São a face do futuro
Se desenhando no ar.
E quando neles chegamos
Com nosso beijo fecundo,
Geramos fontes e auroras
Pra os desafios do mundo.

Nós somos todos os ventos
Que cumprem velho ritual
Num berço de gauchismo
Plantado no litoral.

És Conceição, és Osório,
Buscando sempre crescer;
Sabendo pra onde ir
Porque sabe de onde veio;
Agora somos platéia
Pra o sopro dos teus rodeios...

Já faz um século e meio
Que nós te vimos nascer!

Rancho de luz

Sentado à mesa, o mate novo, a vela acesa, o olho turvo
Ouço mil cascos em disparada, lá por de trás da coxilha
E o Negrinho gorjeia seu riso, por ter achado a tropilha
Dou-te o lume da vela, a prece prometida
Encontre minha alma que anda perdida
A escuridão da noite ainda me traz
Espíritos que vagam sem ter paz
Aquerenciando o temor de encontrar
Lá fora o fogo insensato do Boitatá.

São índios e padres, são negros, mulheres, soldados
Que adentram o rancho e mateiam proseando ao meu lado
Guiam-se pela prece aos braços abertos na cruz
Enquanto a vela aquece os sonhos que povoam esse rancho de luz.

Indago a Cristo na parede, se pode um mate aumentar a sede
Na chama da vela que se desfigura
Vejo o campo e nele ecos de loucura
Faíscas de adagas, a morte estampada
Tempo das batalhas, de morrer por nada
Murmúrios engasgados em pecado e dor
Clamam ao meu lado a mão do redentor
“Roque” na fogueira, sem o coração
toma minha prece como extrema-unção
o aço de “Latorre” vem pedir perdão
da fúria da “criolla”, do sangue nas mãos.

São índios e padres, são negros, mulheres, soldados
Que adentram o rancho e mateiam proseando ao meu lado
Guiam-se pela prece aos braços abertos na cruz
Enquanto a vela aquece os sonhos que povoam esse rancho de luz.

Quilombo do morro alto

Não me digam que sou negra de alma branca,
Pois minha alma tem a cor que eu mesma ostento!
Negra minha pela, sim senhores,
Negra minha alma, com orgulho!

Me pergunto com ponta de amargura:
Por que sou menos por Ter pele escura?

A terra avó ainda soa
Na voz de um velho africano,
Lembrando histórias do Congo,
Que segue vivo além-mar.
Tambores, tantos tambores,
Insistem em retumbar...

Fui morrendo nesta terra sem viver,
Trago o peso dos grilhões e preconceitos...
Escravidão ardendo no meu peito
E o coração finando sem querer.
Mas veio das lonjuras do meu ser
Uma paixão que me tomou de assalto
E junto aos meus, aqui no Morro Alto,
Depois de morta pude renascer.

O vento ruge aqui perto,
Tão forte quanto o meu peito
Ruge ao clamar liberdade...
O futuro é um céu aberto
Pra que as asas do respeito
Possam bater de verdade.

Sou gente desse quilombo
Sou um dos que ainda vivem
Das sobras da escravidão;
As marcas das chibatas sangram
Na pele negra do meu coração.

Meu ventre incha aos poucos, hesitante...
A vida vem mostrar o seu poder;
Mas nem a escravidão nem as correntes
Alcançam esta vida a florescer.

Meu filho nascerá neste quilombo...
O sol dourando o morro lembra o Congo
E faz o meu olhar ganhar lonjuras;
Ao mesmo tempo vem no coração
A minha eterna interrogação:
Por que sou menos por ter pele escura?

Ou talvez quem me julga se condena
Com pele branca e alma tão pequena
Pois seus olhos não conseguem enxergar;
Que pudemos ser escravos algum dia
Mas com ou sem terras e cartas de alforria,
Nós somos livres, muito além deste lugar!

Eu sonho através das eras,
Pra mais de um século já...
Um futuro de igualdade
Muito mais que liberdade...
Futuro de identidade...
Esse futuro virá?

Mesmo depois de meu filho...
Mesmo depois de meu neto
Virá um tempo onde meu povo
Não precise compaixão?
Seguindo de fronte erguida,
Sem golpes da sociedade...
Andando com as próprias pernas,
Criando com as próprias mãos?

Será que a dor do quilombo,
De tantos talhos e tombos,
Encontrará redenção?
Será que a sina do negro
Encontrará algum sossego
Num tempo sem privação?

A indagação ressoa em minhas agruras:
Por que sou menos por ter pele escura?

Essa pergunta nunca vai calar?
O preconceito nunca vai calar?

Eu sonho através das eras,
Pra mais de um século já...
Peles negras, almas negras,
No ventre deste quilombo
Lavrando sua própria terra,
Colhendo sua própria paz...
Um futuro de igualdade
Muito mais que liberdade;
Futuro de identidade...
Esse futuro virá?

Olhos negros

Passo a passo, tento a tento,
a vida segue seu tranco
pelos fundões desses campos
que São Pedro apadrinhou...

O tempo passa de manso,
os homens passam depressa,
mas a história fica impressa
no itinerário do pampa;
Às vezes escrito a suor,
às vezes escrito a sangue,
sangue nosso, sangue quante
que a história derramou.

Onde ficou a verdade
nessas incertas volteadas
que a saga humana trilhou?

Onde ficou a ternura,
o sonho de liberdade?
Talvez tenham se extraviado
nos labirintos de morte
que o fio da espada criou.

Os homens seguem cegos seus caminhos,
os fins justificando meios vis,
a morte a engordar seus pergaminhos
e os meios nos levando rumo ao fim.

Mas, num misto piedade e revolta,
dois olhos negros miram de longe,
sem ninguém notar...
Acima dos montes, além das cumeeiras,
das copas frondosas das grandes figueiras
dois olhos contemplam buscando entender:
"- Já faz tanto tempo..."

"- As sangas tão puras, os rios, as vertentes,
os peixes, as flores, o cio das sementes
brotando da terra num rito de paz.
Um pampa tão vasto, um solo tão fértil,
a enxada na terra plantando o sustento,
a vida brotando na luz de um rebento
e os homens unidos por seus ideais."

"- As aves planando, a chuva caindo,
o sol despontando, pessoas sorrindo,
o vento soprando mensagens benditas
nos ranchos das vilas, nos fundos dos campos,
a noite luzindo por seus pirilampos,
o dia abençoando as coxilhas de luz."

"- Onde está este mundo que sonhei...
Onde estão a pureza e o amor?
Será que sucumbiram no veneno das águas?
Será que murcharam na agonia das flores?

Talvez tenham partido no suplício dos ventos
que ecoam tristezas e soluços de dor."

"- Talvez o tempo dos homens
não tenha mais luz que suas próprias ações.
Talvez as suas pegadas se encontrem marcadas
na frieza dos seus corações."

"- A terra gemendo a solidão da enxada,
campeiros entregues ao rigor das vilas;
Velhos morrendo na ilusão das filas,
os índios atirados nos beirais da estrada."

"- O homen teve arbítrio e impiedade
ao riscar os seus mapas e verdades,
a frieza de impor a sua vontade,
a maldade de pisar seus iguais
nos rastros desse povo retirante,
a realidade crua dita os traços
em cada rosto uma feição de sombras
vagando cega entre os temporais."

Densos, profundos feitos a madrugada,
dois olhos negros se quedam a chorar...

Mas o que se vislumbra além do cerro,
além do temporal, da cerração?
O que floresce luz liberdade
além do ventre vil da escuridão?
Dois olhos negros antes tristes, turvos,
se inundam de doçura e esperança,
mirando os lábios de um sol de primavera
beijarem um semblante de criança.

Era a chave, a razão, o elo perdido
surgindo na inocência de um menino,
era o avesso das dores sem sentido,
era a ternura sufocando os desatinos.
O homem pode recriar o seu destino,
basta vontade e coragem de tentar,
pois cada um tem o direito de buscar
a mesma paz do coração dos pequeninos.

E o tempo segue ao dobrar dos sinos...

Dois olhos negros seguem na vigília
além do manto destas sesmarias,
com profundezas de encantar os dias
e prantos doces de inundar coxilhas.

A esperança é um anjo que flutua
calando a solidão da noite escura.
Está no moço que sonhou nas ruas,
está em dois olhos muito além da lua.

Dois olhos negros plenos de ternura
feito a criança que o sol beijou!!!

O grande anão

O grande anão não usava alpargatas
nem botas de cano alto...
Andava de pés no chão.
Ia despacito criando rumos no seu itinerário incerto.
Um bolicho de quando em vez, um traguito no mas
E uma risada misto pena e complacência
Com todos que o chacoteavam por esses balcões da vida.

O grande anão não temis fantasmas...
Assombrava-os com sua grandeza
De saber ser pequeno entre os grandes.
Remoia-os em cada silêncio, em cada soluço, em cada luar.
Era um sonho, um suspiro, um pesadelo,
Um sinuelo de embates o grande anão.

Por vezes apertava os olhos pequeninos em direção do horizonte,
Tentando antever o que lhe reservava o amanhã,
Pois era rumo ao horizonte que seguia,
cada vez mais longe de sua terra, cada vez mais perto de si.

O grande anão não tinha dialetos,
Falava o idioma dos ventos...
Das aves, das plantas, dos bichos.
Língua humana, pra que língua humana?
Língua humana era usada para o humilharem, para o desprezarem,
Para o perseguirem.
Língua humana não!
Humanidade, palavra estranha
Pra definir quem pisa num igual...

Igual! Talvez não pelo tamanho,
Talvez não pela aparência,
Mas igual em ser um homem,
Em ter alma, ter consciência...
Mas igual em ser humano,
Coisa que muitos humanos,
Altos, ricos, soberanos,
Por certo não sabem ser.

Era difícil ser grande
Em um corpo tão minguado...
Desde piazito sentia
A ignorância dos homens
Já no ventre da família:

- Anão, não vai no bolicho,
- Anão não brinca na sanga,
- Anão, não corre carreira!
- Anão é bicho na canga!

- Anão carrega esse balde!
- Anão não serve pra peão!
- Arranca as ervas daninhas,
- Tu tá mais perto do chão!

O preconceito aflorava em cada dia da vida...
Em cada olhar desconfiado
Que as moças lhe desviavam,
Em cada tom debochado
Das conversas dos vizinhos...
Em cada baile na vila
Que não encontrava par.

Um dia cansou de tudo,
Cansou de ser pau mandado...
Cansou de ser uma sombra
Na estância e no povoado
E viu que a estrada chamava
E convidava pra andar.

Entrão andou e andou,
Caiu, sofreu, levantou
E mesmo assim continuou...

Pois talvez lá no horizonte
Encontrasse uma querência
Onde ele fosse medido
Por sua honra, sua decência...
Por sua coragem de taura,
Por sua bondade imensa,
Por tudo aquilo que pensa,
Por tudo aquilo que crê.

Já não cabiam na estrada
Suas pequenas pegadas...
Queria mais que os bretes,
Queria mais que esses trilhos de alambrado...
Já não cabia em seu corpo,
Pequeno corpo cansado,
Toda a grandeza da alma...

A alma queria vôos,
A alma queria sonhos,
A alma queria Deus.
Não apenas Deus em sua forma mística,
Mas um Deus que abraça, um Deus que apóia,
Um Deus que acompanha lado a lado
Cada pequeno passo da grande saga do mundo,
Um Deus que, acima de tudo,
Mais do que pai é um irmão.

O grande anão não portava adagas
Nem garruchas...
Não ostentava palas nem lenços,
Tampouco tinha cavalo...
O grande anão por vezes chorava com a chuva,
Por vezes luzia com o sol.

Não dispunha de tentos nem laços...
Se pealos teve na vida,
Só os que a vida lhe deu.
O grande anão foi imenso
Em sua saga terrena,
Era maior que os maiores
Com suas almas pequenas...

Por minha alma pequena
Era maior do que eu!

O sétimo dia

O sétimo dia chegou cedo...
Cedo demais ou me perdi nas contas
E eu aqui, sem uma flor sequer;
Sequer um choro pra lavar minha alma,
Algum bilhete ou um adeus qualquer.

O sétimo dia chegou cedo,
Tranqueando num soluço costumeiro
Que desta vez abarrotou meu sonho
No abismo tristonho de onde veio.

Chegou cedo, mas chegou tão calmo
Que eu sequer me dei conta da importância
E da real noção dessa distância,
Quando o mundo se mostrou a sete palmos.

A vida inteira continua a dança,
Moças sorriem, moços campereiam;
Aves revoam, potros corcoveiam,
O sol rebrilha no espelhar dos rios;
E eu, penando neste fundo frio...
Pelo meu nome dois ou três rezando;
Mas essas rezas vão se extraviando
Pois minha alma é um surrão vazio!

Se meus olhos não mais tinham estradas
Meus olhares então vieram comigo...
Trazendo cada sombra disfarçada
De um sonho que ficou junto à ramada,
Num tempo que há tempos foi perdido.

A terra não protege das distâncias
Onde o tombo marcou cartas jogadas,
Onde a cincha correu desesperada
Pras virilhas do sonho caborteiro.
Uma fome tomou-me por inteiro
E ficou ruminando minhas idéias,
Um tanto indigestas por sinal...
Foi então que, há exatos sete dias,
Deixei a vida pra virar poesia
Num desespero que se fez final.

O sétimo dia chegou cedo,
Podia ter demorado tantas eras...
Podia ter me livrado das esperas
E das matilhas do meu coração.
Que ainda hoje neste abismo fundo
Devoram as lembranças de outro mundo,
E me perseguem nesta solidão.

Nenhuma nuvem no céu...
O céu do sétimo dia
Pintado a raios de sol...
Uns sete dias depois
Que a esperança se foi
E eu, sangrando por dois
Me fiz um peixe no anzol.

Meu funeral foi bonito,
Com pompa, com circunstância,
Circunstancial esta dor...
Há sete dias atrás
Disseram: Descanse em paz!
E eu, do meu nunca mais,
tremi de frio e pavor...

Disseram, descanse em paz...

Como pudesse haver paz
Pra quem morreu por amor!

O homem que encantava facas

O talho que fere fundo
não mostra a sina da faca...
A faca é mais que seu corte...
É mais que o golpe do braço.
É mais que um beijo de morte
ou um romance da chaira...
a faca é a história que paira
no céu gelado do aço.

A faca pode ser bruma
quando usada pra o mal...
envolvendo algum vivente
no seu feitiço fatal.
Ou também pode ser sol
clareando os melhores rumos
se tenteia alguma lonca
ou se está picando fumo.

Não se sabia o porquê,
não se sabia a razão...
as facas o procuravam...
se achegavam encantadas
e vinham de tantos lados
que a dita rosa dos ventos
parecia pequenina,
talvez um mero botão.

Era um homem normal
mas nem de perto comum...
talvez jeito, talvez sorte,
talvez por longa visão,
enxergava cada faca
feito quem vê uma missão.

Adorava cada faca,
adotava cada faca
com a querença de um pai.

Um regalo de um amigo,
uma herança de um avô...
um achado em campo aberto,
que algum gaudério extraviou.
Tinha uma deste moço
que de muito lhe valeu...
e outra que fez costado
quando o moço envelheceu.

Aquela, aço "Sholberg",
ele sabe de onde veio,
mas não conta pra ninguém...

E a templa do "Marca Touro"
faz rima com o "Besouro"
na parte alta da estante...
(porque facão é somente)
o aumentativo da faca...
seu porte assim lhe garante!)

A "Solingen" bem cuidada,
logo abaixo do "Formiga",
costeia uma orelhana
que foi tesoura de esquila.

Que sina estranha da faca
que um dia já foi tesoura,
tosando velos e sonhos
pelas manhãs de comparsa.
Imita a sina dos homens
em constante mutação,
somando metamorfoses
que o tempo nunca disfarça.

E a faca de castração,
quanto estrago já fez...
tanto touro transmudado
em boi, de uma só vez.
O gado, sem qualquer chance,
perdia os bagos e a essência
nesse medonho destino
de não deixar descendência.

O homem corre seus olhos
em cada faca pousada,
feito um bando de andorinhas
cansadas da revoada,
e cada faca se entrega
pra ele e pra mais ninguém...
pois nesse instante sua alma
se entrega a elas também.

A sina da faca é febre
quando a mão assim o quer...
pode ser golpe de maula
ou carinho de mulher.
Pode ser tigre na jaula
ou um caminho qualquer.

Mas ele mira as suas facas,
que parecem encantadas,
com olhos ternos de pai...

Algumas têm na bagagem
tanto sangue derramado...
umas por causa de honra,
de tantos sonhos cortados
por atos bem mais malinos
que a faca pode criar.

Outras por mero capricho
por um olhar ou cochicho,
quando gente vira bicho
numa peleia de bar.

O homem sabe os segredos,
guardados a sete chaves,
que cada faca contou.
Também sabe que na vida
somos do porte e do jeito
que o mundo nos temperou.

Que cada faca é encantada
como a vida nos encanta,
quando partimos do nada
pra um sonho que se agiganta.
Mas quando a vida maltrata
também podemos ser faca
buscando alguma garganta.

Assim foi por muito tempo
concebendo seus conceitos...
e hoje entende que a faca
que se crava nalgum peito
pode ser a mesma faca
que descasca uma maçã.

Porque a faca, meus senhores,
não é torta nem direita...
é instrumento de trabalho
ou falta de respeito...
depende exclusivamente
de quem a toma nas mãos...
se tem luzeiros na alma
ou feras no coração!
Se tem a paz que dá alento
ou a fúria que encandesce;

É o braço que dita as regras...
a faca só lhe obedece!

O homem do avesso

Picava fumo meio sem jeito naquela hora sebruna;
Era um fumo dos buenos, amarelinho,
“flor de tropa” do bolicho velho
Era um homem dos buenos, bem gaúcho,
“flor de tropa” de qualquer galpão.

Sua mão ainda ágil deslizava
pelo cabo de uma faquinha sem marca,
Mas afiada feito língua de fofoqueira
em dia depois de baile.
O fumo, estranha serpente inerte e contorcida,
Aos pouquinhos ia se transformando
Em um punhado de pequenos mundinhos, pedacinhos
E farelos de odores, sabores, desejos e prazeres ocultos
E a longo prazo de males bem conhecidos.

Cada mundinho de fumo parecia matutar:
“-Será palha ou Colomi?”
E o gaúcho nem aí...Dê-lhe faca e dê-lhe dedo!
Talvez picando seus medos nesse longo repetir.

Já era o terceiro naco picado assim a preceito,
Talvez abrindo caminho pra esfumacear o seu peito;
Pra fazer toda a fumaça se tornar nuvem no céu...
Mas todo o fumo rumava pra um saquinho de papel.

Não fumava, nem mesmo dos fabricados,
Mas mesmo assim continuava a picar;”
“-Esse homem é do avesso, mas não dá pra se preocupar.”
Disseram uns companheiros...
“-Mas é um baita dum parceiro na hora de trabalhar.”
Já remendaram no ato com medo do pau pegar.

“-Do avesso é a vó torta!, respondeu de relancina.

No mais ficou em silêncio por uns quilos de minutos,
Picando e picando fumo até outro naco ter fim.

Se vieram os companheiros,
Se vieram pra perguntar.
“-Porque picar tanto fumo
Se tu sequer vai fumar?”
“-Sanidade não tem preço...
Ou tu é mesmo do avesso
Ou então quer te mostrar.”

Ele respondeu no ato,
Como quem quer vale-quatro
Tendo na mão mais que um ás.

“-Ouvi no rádio umas coisas que fizeram pensar...
Que me tiraram da caixa, me levaram de roldão
E que me deixam surpreso com tanta interrogação.”

“-Se tem faca que não corta,
Se tem luz que não clareia,
Se tem gênio que não pensa
E burro que não burreia.”
“-Se tem revólver que engasga,
Se tem galo que não briga;
Tem uns esbanjando bóia
E outros roncando a barriga.”

“-Me digam sem implicar...
O que é que tem demais picar fumo e não fumar?”

“-Se tem gente que se elege pra melhorar a nação
E se esquece do que disse logo depois da eleição;
Se tem pastor que arrecada pra distribuir aos irmãos
E quer sair do país com os pilas no culhão.”

“-Se tem polícia mal paga pra cumprir sua função
E por vez desconta a mágoa no couro do cidadão.”

“-Se o povo em vez de viver tem desviada a atenção
Porque só são no jornal mensalinho e mensalão;
Se até no futebol tem juiz que é mesmo ladrão...”

“-Me digam sem implicar...
O que é que tem demais picar fumo e não fumar?”

“-Se tem ciclone em Torres, tornado em Muitos Capões,
Se o mundo todo desaba com ondas e furacões.
Se isso é fruto de uma espécie que planta devastação,
Suga a terra, cansa o ar e no final lava as mãos...”

“-Me digam sem implicar...
O que é que tem demais picar fumo e não fumar?”

“-Oigalê, bicho daninho!
Do avesso tá mesmo o mundo...
Eu tô aqui, picando fumo,
Bem quieto no meu cantinho!”

O corajoso

Voluntário! Falou. Não disse o nome,
mas não foi esse o apelido que ficou...
Os nervos de aço, os braços de tarumã,
grandes olhos negros feito a própria guerra
e uma compulsão indescrível pelo incerto,
pois incerta é a cruz de um voluntário.

Voluntário! Foi o que disse na tarde derradeira...
Um piquete, um coronel, um ideal,
o lenço rubro a incendiar no peito
e o fio da espada a prenunciar o mal.

Na soleira um beijo na prenda
e um abraço em cada um dos filhos...

A vida é assim, pensou, existem coisas
que um macho deve encarar de frente...
Então deixou seu rancho, sua gente
e partiu, seguindo cego o coronal.

A marcha já durava mais de um mês,
seguindo firme a desenhar estradas;
Arroios, banhadais, minuano, geada
e um que outro tilintar de aço.

O julho cortava firme com sua lâmina de frio
e mais fria ainda ficaria aquela tarde,
pois na beirada de um capão antigo
uma tocais lhes tomou a vez.
A saraivada de chumbo fez morada
na tez morena dos de lenço rubro...
dali a pouco o aço, a cavalhada
e uma carga, descendo o coxilhão.

O coronel, cavalo morto, resistia
honrando o sangue corrente em suas veias,
mas a tocaia é uma imensa teia
que enreda até o mais valente ser.

Seis para um era a conta da peleia,
conta brutal que o resultado é a morte...
Mas, de a cavalo, "inda" brigava um forte,
fazendo carga contra o fogo algoz.
Era ele sim, o voluntário...
Aquele que deixou sua família
para se embretar no ventre da guerrilha
atrás e um sonho que julgava seu.

Meio de susto avistou o líder
já acuado, quase sem defesa,
enquanto a corja afiava as presas
pra o banquete do festim mortal.

De repente um grito, um turbilhão,
ecoando no lugar, feito um trovão
de um tempo feio que tomasse o céu...
O fio da espada se tornou arado
lavrando a carne desses seis covardes
que se perderam, sem achar quartel;
E então, num galope alucinado
disparou pelo lançante o voluntário
levando na garupa o coronel.

Herói de guerra se fez voluntário,
e em outras tantas batalhas se esmerou...
Uma esquiva, a dor de um golpe seco
e outro corpo que se ia ao chão.

Corajoso, lhe chamavam os parceiros,
Corajoso, sim, pela bravura
de fazer brilhar por essa história escura
o sol maduro da honradez e de valor;
Numa outra tocaia traiçoeira
prisioneiro caiu, foi resgatado
por outro índio de igual tutano
antes que a "criolla" lhe mostrasse a cor.

Muitas lutas travou o corajoso,
por tantas cargas, machucando o pasto...
Mesma firmeza no semblante gasto,
mas já cansado de viver assim;
Até que um dia a rosa pálida da paz
desabrochou nas agruras dessa terra,
e a rapinagem, o furor da guerra
nesse momento, chegou ao fim.

Então se foi o Corajoso, rumo ao rancho,
buscando o alento e a fé de sua "flor"...
"De que tamanho já estarão os filhos?"
"Será que o campo continua verde?"
Tantas perguntas de quem tem saudade
e não se agüenta para poder voltar.

Queria um mate, uma prosa, uma ternura
e os olhos mansos da mulher amada...
Queria tudo o que perdeu na estrada;
Queria a chance de achar guarida;
Chegou então o corajoso ao pago...
Encontrou o rancho abandonado
e quatro cruzes repousando ao lado,
braços abertos como em despedida...

E então, percebeu o voluntário
que este foi o saldo do inventário
dessa coragem que mostrou na vida!!!

Na boca do poço

A aura do poço era densa,
Não fazia júa à água que acolhia...
A água vinha da terra, do fundo da terra,
O poço veio dos homens, da sede dos homens.

A sede do poço era febre...
Queria muito mais que água,
Queria muito mais que os homens...
Engolia o céu por sua boca.

A boca do céu gritava, clamava, orava,
Mas a boca do poço era voraz...
A boca do poço, ah, a boca do poço,
Quem dera jorrasse num beijo de paz.

A boca do homem tem sede, procura o poço,
O balde na boca do poço, procura a água,
A água, na boca do balde, se entrega ao balde,
E a boca do poço saliva na boca do homem.

Lábios de seca se entregam aos caprichos da água,
Almas de seca evaporam na fome do balde...
Poeira, não mais que poeira por todo lado!
Só sede, não mais que sede, num chão cansado.

Quem evapora nessa nuvem negra?
Quem segue adiante nessa estrada louca?
Só quem saberá essas respostas
É quem cala a voz da sede com sua boca.

Mas a fome do poço é imensa...
Trespassa dimensões com seu tamanho...
O poço verte causa e conseqüência
Da sede da consciência dos humanos.

Quem sentirá tanta sede?
Quem beberá tanta água?
A voz do poço é um pálido sussurro,
O véu do poço é bruma quase extinta...
Só resta água pra os corpos sedentos,
Só resta o nada pras almas famintas.

Só o poço murmura vida por sua boca,
Palavras que o balde jorra engolindo a sede...
Palavras que o poço fala, mas quando fala,
Seu timbre aprisiona os homens em suas paredes!

Jayme e os dez mil poetas

Jayme abriu os olhos mansamente,
Num silêncio de poço...
Sentou, fechou um palheiro,
Olhou para os lados mas não viu ninguém...

Jayme estava só à beira do fogo,
Um fogo grande de incendiar invernos,
Desses que vivem no olhar das prendas
E que consomem tantos corações.

Já não sabia onde estava
Mas era noite de frio...
E os olhos claros de Jayme
Singraram pelo vazio.

Talvez perdidos nos braços
De alguma paixão extrema...
Talvez voando sem asas
No céu de mais um poema.

Jayme estava em silêncio
E em silêncio ficou...
Puxou um naco de fumo
E lentamente picou.

De repente dez mil luzes,
Dez mil sóis, dez mil estrelas
Se puseram a brilhar...
Dez mil lendas andarilhas,
Dez mil almas em vigília
Se achegaram ao lugar.

Dez mil pássaros surgiram
E dez mil anjos caíram
por entre os focos de luz...
Dez mil vates e profetas,
Dez mil sonhos, dez mil poetas
Dez mil mártires sem cruz.

Jayme sentiu tempestades
Trovoando no coração...
Os poetas foram chegando
Sem nunca tocar o chão.
Jayme ouviu as palavras
Desses dez mil querubins;
Num mnesmo tom de verdade
Então disseram assim:

"- Teus versos vem das entranhas,
Não só da terra vermelha,
Mas da própria humanidade
Onde teu sonho se espelha."

"Quando criavas tuas rimas,
Quando soltavas tua voz...
Em cada luz que parias
Havia um pouco de nós."

"Somos o sonho construído pelas eras,
Em cada estrofe que alguém ousou compor...
Pois na verdade ninguém cria, é instrumento
Que o pensamento dos antigos dominou."

"Tens o teu Dom porque és um ser iluminado,
Foste escolhido pra seguir essa odisséia...
Onde as nações sangram as chagas do pecado,
E o poeta traz a cura com as idéias."

"Somos a fé em tudo aquilo que buscavas,
Dez mil guerreiros construindo um ideal...
Somos a vida florescida nas palavras
Somos a chama da poesia universal."

"Estás aqui, companheiro,
Pois tens razões para estar...
E hoje vieste tomar
Um lugar perto dos teus;
Estás aqui, missioneiro
Porque és irmão e parceiro...
E o teu solo vermelho
É o próprio sangue de Deus."

Jayme engoliu o silêncio
E uma lágrima caiu...
Numa força mais intensa
Que as águas de um grande rio.

Os anjos então partiram,
Riscando o céu num clarão...
Foi quando o mais nobre arcanjo
Levou Jayme pela mão.

E hoje quando um poeta
Nalgum confim do planeta
Se veste de coração,
Existem dez mil guerreiros
Mais um anjo missioneiro
Voando sem cativeiros,
Ocultos na inspiração!!!

Guarita

Como chegou, ninguém sabe,
Ninguém viu nem se importou...
Apenas passos cansados
E um silêncio que restou.
Mira longe, pisa perto,
Sente o destino nas mãos...
Anseios de céu aberto
Pulsando no coração.

Os pés se firmam no morro,
A alma tenta voar...
Os sonhos pedem socorro
Beijando a boca do mar.
Não ouve mais os tormentos
E o mundo dizendo não...
Escuta apenas o vento
E o som da rebentação.

Os olhos enxergam longe,
Além do bem e do mal...
Buscando um tempo perdido
No templo do litoral.
De cima a vida é mais vida,
Mas também pode não ser...
Num momento os pés bem firmes,
No outro, quem vai saber?

Seus olhos buscam o céu
Nos olhos claros do mar...

Quantos segredos nunca revelados,
Quantas paixões e temporais humanos...
E quantas cruzes foram carregadas
na "via crucis" do passar dos anos.
Tantas peleias, tantas despedidas,
Tantas histórias que não vai contar...
Quantos lamentos vertem desses olhos
Que hoje se perdem na amplidão do mar.

Os barcos recortam o horizonte,
Parecem que são anjos pequeninos...
O mar é um véu de paz neste momento
Chamando pra cumprir o seu destino.

As ondas batem forte pelas pedras,
O sal das lágrimas desaba do penhasco...
E encontra o sal de quem, embora cristalino,
Está prestes a ser feito de carrasco.

A torre alta é um altar de sacrifício
Pra quem, agora, quer se dar ao precipício
Como se fosse dar as mãos ao Criador.
Que ironia! Pois quem busca esta saída
E por ter dores abre mão da própria vida
Leva consigo a dor mais triste pra onde for.

A Guarita hoje é o palco dessas dores...
Um teatro sem platéia ou refletores
Num monólogo calado pelo ator.

De onde vem tanta mágoa?
Porque se turva a visão?
Porque buscar pelas águas
Alento pra o coração?
Porque desistiu de tudo?
Porque cansou de lutar?
Porque procurar o céu
Nos olhos claros do mar?

Talvez seja porque o céu
É só um espelho do mar.

Dos que se foram

Tudo parte de um fogo quase extinto e uma pequena cruz
Onde um rosto sofrido parece me olhar...
Já não há dor, mas sim uma saudade mansa
Que não me abandona nem me deixa esquecer.

Os semblantes, um e um se perfilam e me desvendam...
Se entregam à mim como se esta noite fosse a vida inteira
E a vida inteira fosse apenas um suspiro de lembrança e paz.

Vô Carlos, sentado no escritório,
numa prosa truncada com o Seu Aldo,
Que tranqüilo, vai picando fumo até o instante marcado pra se ir.
Meu Vô era assim, meio fechado, um rosto sisudo, pouca prosa,
Mas por certo com um grande coração...
Estancieiro forte, calejado,
Com ares de potro indomado
Que consigo haverá de ter levado
Pras lonjuras da outra dimensão.

Seu Alcides, amigo velho, senta ao meu lado,
Abre um sorriso, e num instante me aperta a mão...
Falamos das tantas coisas do passado,
Das prosas, das histórias, e principalmente dos finais de semana
De visita e mate, que inevitavelmente terminava sempre igual:
"-Mano, por favor nos traz um Granja União e duas taças,
que um pouco de vinho com os amigos
amansa o coração e só faz bem.!
E lá se iam pra mais de seis garrafas, até chegada a hora de seguir.

Vó Esther, minha bisa, que saudade...
Corpo curvado pelo fio dos anos
Mas as mãos firmes navegando o piano
Sempre que um neto lhe queria ouvir.
O eterno bingo dos aniversários
Que ela ganhava com louvor e festa
Quase sempre com a cumplicidade
De quem, batido, lhe cedia a vez.
E por certo o nosso maior prêmio
Era ver seu sorriso de alegria
Frente aos rostos coniventes da família,
Pois não tem preço um momento assim.

Vó Helena, minha outra bisa, tão distante, tão presente,
Um grande amor que ultrapassou fronteiras
E ainda hoje continua aqui...
A Giga, sempre com segredos,
Sempre vestida com seu chambre gasto...
"Um trocadinho, meu filho, pra o cinema
ou então pra um guaraná no japonês..."

Estranha a vida que nos cria, que nos traz ao mundo,
Que nos dá o dom de amar
e de repente nos rouba aqueles que amamos,
Só deixando a saudade, um sem fim de lembranças,
Umas fotos já gastas, umas cartas trocadas,
E nos olhos um pranto, que se vem, sem querer.

Mas a vida também reserva o bem, o sonho, e outro tipo de amor
Nos dá alento e carinho nos braços de alguém...
E desse carinho floresce a ternura que só um filho nos traz.

(É estranho procurar nos filhos os traços
antigos de alguém que se foi, e encontrar)

Vô Omar que nunca vi até este instante
Mas que sempre me acompanha, até no nome...
Convivência que a vida me negou
Sentimento que sempre vai ficar...
Quantas vezes me pego nos retratos
Aonde figuras distraído...
Mas agora com todos meus sentidos
Te tenho aqui comigo, meu Vô Omar.

Vó Sarita, olhar de campina se achega tranqüila ao meu lado...
Me oferece um mate, comenta da vida e diz alguns versos,
Falando dos filhos, sonhos perdidos,
Da casinha do campo coberta de hera,
Das flores cheirosas, das estrelas mais lindas
E das coisas que a vida pode ter de melhor.

Assim era ela, tão simples, tão pura como as suas poesias
Mais um mate, talvez, me oferece
E eu de rosto molhado recebo essa cuia
Como fosse um regalo do seu coração.
Assim era ela, correr de regato,
Que entra no mato e abre caminho até se perder...

Vó Djanira, de janeiro como eu,
também se achega no seu passo manso,
Vinda de onde, eu nem tenho idéia,
Mas com o mesmo olhar, a mesma voz e o mesmo amor:
"-Quer um café, meu netinho, um bolo?
- Quem sabe uma chimia de goiaba que a Bedinha fez no Plano Alto
E deixou guardada só para ti...
Um cafuné quem sabe, um matexinho
Pra gente colocar o assunto em dia..."
Então neste momento de alegria eu tive minha vó juntinho à mim.

Ainda me lembro a última vez que à vi em vida
O corpo cansado e judiado pelos anos...
As mãos trêmulas, as pernas frágeis,
Mas o mesmo olhar de luz que me alumiou a infância
E até hoje (minha estrela guia a flutuar no céu).
Olhei pra ela misto dor e ternura,
E as palavras britaram sem querer...
!-Eu te amo minha vózinha..."
Num só momento o rosto pálido se encheu de brilho
E me respondeu no mesmo tom,
Quase sem abrir a boca desdentada:
"-Eu também te amo, meu querido..."
E foi a última vez que vi minha vó.

Um a um, se achegaram, e partiram
Trazendo um pouco daquilo que já fui,
Levando um pouco daquilo que hoje eu sou...
Saudade, vai ficar, mas sempre boa
Pois o rosto da cruz nos abençoa
Neste sonho de alma e comunhão;
Adeus meus queridos, meus amados...
Levem consigo minha fé mais pura,
De que vocês, em outra noite escura
Junto ao fogo e à cruz, ressurgirão!!!

Do que falam os sonhos

Suspira a folha amarela
De um caderno envelhecido,
Como buscando respostas
Que ninguém mais encontrou;
A pena pulsa na mão,
Ansiosa, encabulada,
Navegando a madrugada
Onde o poeta chorou.

Suspira a alma do poeta
E transborda em seu olhar...
Buscando a flor mais preciosa
No seu jardim de ilusão;
Que estranho labirinto
Entre o viver e o criar,
Ao tentar dizer em versos
As coisas do coração.

O minuano desatina
Com suas lâminas de frio...
A pena é um pássaro errante
Querendo ganhar o céu.
Mas o poeta é prisioneiro
Do seu próprio desafio...
E outra lágrima faz rio
No amarelo do papel.

O poeta dorme afinal,
A pena foge da mão...
O tema não despontou,
O poema não despertou,
O papel caiu no chão.

E os olhos fundos do poeta
Singraram a escuridão.

Mas do que falam os sonhos
Quando se ausenta a razão
E a alma navega livre
Mirando mais que o olhar?
Mas o que contam os grilos
Quando as tristezas se vão
E aflora o sonho mais lindo
Pra quem quiser enxergar?

Do que falam as estrelas
Nessa noite sem luar?
O que cochicham as almas
Que vagam nesse rincão?
Será que a alma do poeta
Se encontra nesse lugar,
Ou será mais uma estrela
Luzindo na imensidão?

Ninguém sabe, ninguém viu,
Mas de repente o estio
Se tornou inundação
Do mais bonito dos rios.

A alma agora é vertente,
É paixão, é ventania...
É a palavra mais fluente
Num grito de rebaldia.
Fala de terra, de gente,
De tudo o que vale à pena...
A alma se fez um sonho
E o sonho mostrou o tema.

O poeta então despertou
Num misto espanto e sorriso...

Buscou a cena caída,
Que repousava, tão só,
E o papel amarelado
Manchado de pranto e pó.
Deixou a alma falar
E contou coisas tão simples,
Tão difíceis de enxergar.

Falou de um homem, plantando
Após a safra perdida...
De um velho, se levantando,
Depois da queda sofrida.
De corações se encontrando
E de um ventre carregando
Mais um milagre da vida.

Falou de alguma milonga
Dedilhada num galpão,
Quando a alma do campeiro
Era luz e inspiração.
Contou que o sonho é uma ponte
Que cruza o rio no horizonte
Pra quem se faz coração.

Falou de ranchos pequenos
E de porteiras abertas...

De mãos erguendo moradas,
De mães soprando acalantos
No ouvido manso dos filhos.

Falou do sol, ressurgindo
No meio dos temporais,
De alguém, num palco de guerra,
Entoando um hino de paz.
Falou do rosto da moça
Que transbordou num sorriso
E fez da alma do moço
Um canto do paraíso.

A alma se fez um sonho
E o sonho mostrou o tema...

Falou de coisas tão simples,
Dos desejos mais comuns...
Daquilo que o tempo inscreve
Na saga de cada um.

Falou de coisas tão simples,
Tão difíceis de enxergar...
Assim o tema jorrou
E inundou o papel.

Os olhos fundos do poeta
Se afundam, em despedida,
Pela noite mais bonita
Que a poesia iluminou.

Será a flor da poesia
Delírio de um sonhador?
Será o tema um espelho
Das fantasias da alma,
De alguma ânsia escondida?

O tema veio num sonho,
No maior sonho de amor...
O tema veio num sonho,
Um sonho chamado vida!!

De costas

De costas, fora de pulha, é assim que vejo o mundo...
É assim que vejo os dias que passam ao meu redor,
Contemplando o chão, deixo as casas, reviro a alma nas brasas
E bato meu par de asas pra revoar da razão.

De frente vejo um espelho, talvez um pouco quebrado,
Mas ainda assim um espelho que mostra o mundo lá atrás;
Fiquei com pena do mundo, rezei muito, até chorei,
Mas talvez não faça jus ao pranto que eu derramei.

De costas, fora de pulha, é assim que o mundo me vê...
Virou de costas enfim...Talvez por ter visto em mim
Um olhar de quem não crê.
Eu creio no mundo sim, mas não num mundo chinfrim
Que não tem nada a dizer.
Eu quero meu mundo assim;
Dizendo não pra o ruim
E o sim pra quem merecer.

O meu espelho retoca suas cores e impressões...
Nem parece o mesmo mundo sem caminhos nem paixões;
É um mundo redesenhado, o espelho mostra seus traços,
Onde a maior das adagas é bem menor que um abraço.

De costas, fora de pulha, é assim que fixo imagens,
Não confundam minha postura com ausência de coragem;
Fico de costas para o mundo com forte convicção
Que ele pode, num segundo, me golpear à traição.

Tem um rio de inquietudes que me inunda cada artéria,
Que transpira pelos poros e transborda nas idéias;
Não viro as costas pra o mundo por desdém ou por castigo,
Mas pela dor sobre-humana de quem, após muitos anos,
Olhando nos mesmos olhos, não mais conhece um amigo.

De costas, fora de pulha, o mundo às vezes rezinga
E desabafa pra mim...
Reclama do meu motim, do meu bafo de cachaça,
De ter trocado a bombacha por uma calça de brim.
Se sou gaúcho de fato ou gaúcho de festim.

O mundo às vezes rezinga e desabafa pra mim.

Neste exato momento dou a volta ao meu eixo
E encaro o mundo de frente.
O mundo já se virou...

Foi ele que quis assim, foi ele que quis pelear;

Não se duvida de um homem que planta sonhos em si...
Ainda tenho a mesma alma, a mesma fé em meu olhar.
Mesmo sabendo de sobra que luta pode ser fim,
O mundo desenha raios de ferro branco no ar!

Mas a força de um abraço mostra que o gume do aço
Desta vez não tem lugar.
Não preciso de astrolábios pra me situar neste céu,
Não preciso de desculpas pra ter perdão e perdoar.

De trás de todo o furor surgiu um raio de amor
Que iluminou seu olhar...
Reencontrei meu amigo!
Meu velho mundo perdido em algum tempo ou lugar
Muito mais do que esquecido,
A fé botou falta-envido nas cartas do que será!

De frente, é assim que vejo o mundo!
Já sem espelhos, sem pulhas, sem mágoa nem pequenez...
De frente, olhar de amigo...É assim que o mundo me vê!

De alma inteira

Retoçou o peito feito potro arisco renegando o freio...
Já mirei na volta, procurando as portas
Pra saltar bem longe dessa solidão.
Refuguei o mate, espantei as mágoas
E bebi das águas do meu coração.

Já não vejo sonhos tão incertos,
Nem percebo sombras mal dormidas...
A alma é clara e ilumina o breu.
Não me falem da linha do horizonte
Por distante, fugaz, inatingível...
Meu horizonte não é mais que eu.

Pois se meus olhos cegam,
Sem auroras
Frente aos tombos e tropeços da jornada...
Quando levanto e retorno à caminhada
Sou meu próprio horizonte nessa hora.

Pra quem é livre e renegou maneias
Não há malino que lhe escreva a sorte...
Não me quebram a espinha sem peleia,
Não me vergo a alma, nem na morte.

Não tremo ao tinir das açoiteiras,
Dou a cara a tapa, mostro a outra face...
Pois a cada golpe minha fé renasce
E eu renaço das cinzas, de alma inteira!

De alma inteira, abraçando o mundo,
Bendizendo a vida, retrucando os pealos,
E inundando os olhos, meio sem querer...
Não o pranto triste de uma dor que aflora,
Mas o pranto doce que a alma chora
Quando a paz é tudo o que se pode ver.

Meus manuscritos são simples,
Contam histórias tão simples...
É tão fácil ser feliz!
E mesmo tendo feridas
Só me arrependo na vida
Das coisas que eu nunca fiz.

As sementes que plantei
e a terra não germinou...
A morada que ergui
e a enchente carregou...
Os ideais que busquei
e o destino me negou...
Não são peleias perdidas...
São entrelinhas da vida
Que escreveu o que sou.

E no fim de tudo, eu sei,
Levarei junto a certeza
Que pelo menos tentei.

De alma inteira me entrego à vida
Sem temer os golpes,
Desviando os laços que de sobre-lombo
O destino joga;
Sou assim, renasço, atropelo a sorte,
Minha alma inteira é de liberdade
E uma alma livre não se põe a soga!

Alma antiga

A eternidade é lagoa
por onde o tempo navega...
O tempo, que abençoa
gerações e gerações.
Silêncio de voz afiada
rimando passos marcados
pelos rumos dessa estrada
que a eternidade criou.

Eternidade é bagagem
nesta viagem tempo adentro...
Neste somar de momentos
que flutuam no inconsciente,
mas insistem em negar
suas histórias e imagens
a quem quiser encontrar.

Alma antiga, sangue moço,
com inocência no rosto
e universos no olhar,
trazendo o sol e o luar
a quem souber entender.
O pampa é um manto de estrelas
para teus olhos serenos
na face, que se remoça
em cada novo nascer.

Profundezas de infinitos
em teus olhos estampados...
De um tempo em que a humanidade
era um esboço de tudo
o que a fé e o conteúdo
criaram neste lugar.

Teus olhos que viram guerras...
O sangue banhando a terra,
cenas de medo e terror;
Mas teus olhos são de entrega,
olhar de luz, que carrega
noites de sonho e de amor.

Alma antiga, que desdobra
o tempo e seus pedestais...
O vento venta lamentos,
uivando timbres sedentos
de mansidão e de paz.

Alma antiga, teus silêncios são meus rumos,
meu sinuelo, que define o caminhar...
Rosto moço, pele suave, lábios doces,
olhos fundos, com paixões de céu e mar.

As rodas rodaram tanto
as mãos cerziram, talvez...
Talvez a flor mais perfeita
de toda uma geração...
Ou talvez mãos de trabalho
de campo, de semeadura,
gerando as safras mais ricas
que o chão podia ofertar.

É lindo teu navegar
pelas correntes da história...
Alma antiga, alma pura,
plena de sonho e de luz.

Um beijo no teu sorriso
que se espalhou pelos campos
e fez do mundo teu céu...
Inocência de criança
com olhar de eternidade...
Na verdade, então, quem és?

A verdade poucos sabem...
Só descobre quem tem fé
que o tempo é aprendizado;
Que o presente é só um elo
entre as luzes do futuro
e as fogueiras do passado.

No teu olhar, naveguei
por tantas e tantas eras...
Não vi sombras ou taperas
nas paisagens que encontrei.
Tua luz eu já provei
quando inundaste meus olhos
pela primeira vez...

Espírito remoçado,
hoje Deus te põe à prova...
No teu ser de claridade
alma antiga, vida nova!!

A moça dos olhos brancos

Não sei se vem de longe este dese-
jo que me faz navegar tantos ma-
res...
Um beijo doce transborda no man-
to azul dos meus sonhos, onde pal-
pitam luzeiros, pequeninos, deli-
cados, que bordam esse semblan-
te nestes meus olhos cansados
nestes meus olhos perdidos no en-
canto dos seus Jaraus.

Não sei se vem de longe esta ter-
nura que é pele e brisa acarinhan-
do a vida...
Acarinhando nossa despedida jun-
tinto a uma porteira solitária que
emoldura a frente do seu lar.

Da porteira ela acenava, linda,
plena de sonhos e consolações...
Vestindo simples de moça do cam-
po, sorriso simples de moça do
campo e a paz mais pura nos seus
olhos brancos, nuvens macias,
onde habitam anjos e as esperan-
ças do meu coração.

Seus olhos não alcançam luas, mas
são luar em minhas noites mor-
nas...
Não alcançam aves que revoam
céus, mas são os céus onde o amor
revoa...
Brancos, seus olhos são fundões
de pampa onde o verde não ousou
chegar.

Da porteira, desafia o mundo, que
lhe nega a vista, que lhe nega o
céu...
Encontra o canto de um sabiá fa-
ceiro, o mugir do gado, um relin-
cho ao longe de um potrinho gua-
po, que recém nasceu.

Moça de olhos brancos, dos meus
sonhos alvos, quando chego ple-
no de violão e entrega, sente mi-
nhas canções, que vem falar de
amor.
Sente a mão do vento deslizar no
rosto, e fazer dançar o seu vestido
novo que adora tanto, mas nem
sabe a cor...

Percebo então, num instante, no
seu sorriso de aurora, nos seus ges-
tos silenciosos de doçura e algodão...

Percebo em cada palavra de quem
convive com as sombras, com as
trevas que se ocultam atrás dos
seus olhos brancos, que a vida é
benção divina e que nas voltas do
mundo pra quem tem luzes na
alma não existe escuridão.

Meu peito vira galope nos rumos
da benquerença...
Vou buscar uma porteira, onde
uma moça faceira, cheia de sonho
e de vida, por certo está a me es-
perar.
Ouvirá logo de longe, uma coplita
saudosa...

Levo um amor, que se curva aos
pés da "flor" mais formosa, e este
botão de rosa, bem da cor do seu
olhar!!

A minha alma se afogou no rio

A minha alma se afogou no rio...
Peço desculpas se não convidei
Os amigos pra o funeral,
Mas foi tudo muito rápido, brutal,
E não tive tempo pras formalidades
Que exigia a gravidade da ocasião.

Minha alma se jogou de mim,
Feito quem se livra de um estorvo...

Será por minha cara judiada?
Será pelo meu corpo estropiado
Ou por este olhar sem horizonte
Que me faz o semblante tão cansado?

Será que não quis ver suas pandorgas
Subindo rumo a um céu tão desbotado?

Será que preferiu as correntezas
À mansidão de um poço sem futuro?
Sem medo de perigos e incertezas,
Qual pedra que se vai às profundezas
Minha alma megulhou no rio escuro.

Talvez seja pelo meu ofício...

Talvez tenha cansado de espinhéis,
De tarrafas, chalanas e de anzóis...
Talvez tenha bebido tantos sóis,
Até não saber mais, perder a conta,
Sem entender que a vida é uma linhada
Onde a sorte nos tenteia na outra ponta.

A minha alma se jogou de mim...

Talvez seja pelo rancho tosco,
Pelo catre rude, pela bóia igual...
Talvez seja pelas roupas gastas,
Pelo cusco magro, pelo mate frio...
Talvez por se jungar maior que eu
A minha alma se afogou no rio.

Minha alma se afogou, foi sem anúncio,
Sem participação, comunicado...
Não avisou amigos nem amores,
Não avisou sequer a mim do fato...
Quando me vi, estava abandonado,
Só me restando um vulto...e o relato.

A minha alma se afogou no rio,
Não encontrei sequer restos mortais;
Apenas, num suspiro, se esvaiu...
Um barco naufragado que sumiu,
Fazendo desse rio seu nunca mais.

Talvez seja pela cruz plantada,
Pelo rosto moço num retrato antigo...
Talvez seja pelas esperanças
Que se amiudaram nos estios da vida.

Talvez pelos combates, dia a dia,
Minha alma implorasse parceria
E eu, cansado demais, não soube ouvir...
Quem sabe ao afundar por essas águas,
Quisesse minha mão para salvá-la...
A mão que, sem razão, não estendi.

A minha alma se afogou no rio...

Talvez querendo um beijo das estrelas
Que pintavam de luz as corredeiras,
Minha alma, sedenta, se jogou;
Quem sabe, sem querer, se confundiu,
Pois via nas funduras desse rio
Apenas um esoelho do que sou...

...Ou talvez o rio seja a liberdade
Que a minha alma, em mim, não encontrou!

A espada

A espada é feito uma pena
que escreve com cor de sangue...
O instinto e a loucura refletindo no metal;
Os motivos e a bravura
sob a sombra das bandeiras,
pisando a estranha fronteira
que há entre o bem e o mal.

A voz da espada é silente,
mas planta gritos de dor...
Nos passos de cada gente
já gravou o seu furor;
O gosto do sangue quente
no golpe arrebatador...
Espada, eterna semente
das chagas do desamor.

O fio que corta não treme
mas faz a carne tremer...
O olhar vazio da espada
assiste a vida escorrer.
Meus olhos viram neblina,
perdidos nos temporais...
Deus do céu, quanta chacina
é feita em nome da paz.

Personagem maior dos entreveros,
imbatível senhora das guerrilhas,
que pintou pelo verde das coxilhas
o vermelho matiz do desespero.
A espada não soluça tantas mortes
é fria e impassível, feito as feras...
E o argumento final, que pelas eras
impôs que a lei suprema é a do mais forte.

O mal não vem só da espada,
mas de outras armas também...
Alguém com a faca afiada
na jugular de outro alguém;
Revoluções, patriotadas,
a fúria, a carga, o tropel...
E a fumaça acinzentada
fechando as portas do céu.

Talvez não seja a espada, companheiro,
a culpada de tanta escuridão...
Talvez seja quem a ergue em sua mão
em nome da justiça e da verdade...
Despertando nos porões da humanidade
a fera que habita o coração.

O guma da espada é a extensão
do olhar do homem que perdeu as rédeas...
E fez soprar o vento das tragédias
na história que forjou cada nação.
Não se entende irmão matar irmão...
Razões existem, mas são tão pequenas,
e a paz talvez seja nesta cena
um mero sonho que se fez botão...
Uma rosa de luz que vem do chão,
buscando um canto pra desabrochar.

E o amor, a ternura, a comunhão,
onde ficaram nessa história triste?
Ficaram no valor dos que resistem
ao feitiço da loucura e da ambição.
A verdadeira coragem é um clarão
entre as sombras fatais da incoerência...
É a pequena flor em resistência
a fúria da espada e do canhão.

Um dia o sonho vai brotar das mãos
do homem, que ousou acreditar
que o sol renasceria em cada grão;
E, ao sol que surge entre os temporais,
o fio da espada vai ceder lugar
a luz da rosa que se chama paz!!!

Os caveiras e o engodo da morte

Os olhos nem se cruzaram desde a saída pra lida...
Um vinha mais que montado num baio que era um solosso,
O outro vinha num trono, enforquilhado no mouro.
Dia longo, sol ardendo, légua e pico, campo vasto...
Enfim o final de tarde e a volta mansa pras casas.

Num repente o do baio cravou as esporas e deu-lhe boca!
O outro, por ligeiro, já cutucou num puaço o mouro que vinha quieto.
Poeira comendo floxa, gritedo ecoando longe!
Pata que pata os cavalos!
Relho que relho os gaúchos!

Carreira sem pretensão,
Sem cismas de cancha reta...
Uma carreira de campo,
Conforme disse um poeta.
Carreira desses parelhas
Corrida por dois iguais...
Dois índios de campo e lida
Com almas de temporais.

Mas havia no caminho uma toca de mulita...
Houve uma toca, uma para enfiada,
um mouro rodado, um pescoço quebrado,
Uma moça viúva, dois piazitos órfãos e um velório às pressas.

Houve sim, mas e por quê?
Por que a carreira, por quê?
Nem mesmo o moço do baio
Ao certo soube dizer.

Por que se calou de soco
Quem tinha muito a viver?
Por que se calou, por quê?

Por entre o pranto de todos,
Em vez do moço do mouro
Jazia apenas um corpo
Já sem estrelas no olhar.

Ao lado os Caveiras sorriam com suas xaras brancas,
Estranhos feito um palhaço dançando dentro de um vaso.

Só eles sabiam ...
Só eles tinham a voz;
Sabiam cada segundo
Da hora de todos nós.
Sabiam quem tinha a foice
Afiada, à mão de ceifar...
Sabiam o tempo exato
Que a foice cortava o ar!

Os caveiras se esbaldavam...
Sorriam suas caras feias
De um jeito devastador.

Talvez lembrando o momento
Em que um deles se achegou se engarupando no baio
E soprou ao pé do ouvido do que se achava montado:
"-Crava as esporas e azula"
E assim foi que aconteceu.
Talvez lembrando o momento em que o outro, surrutante,
Chegou pra o hoje finado, e disse: Corre de atrás"

E o koço, por bem mandado, correu de atrás... e morreu.

Se divertiam assim...
Assim era que passavam.

De vez em quando nos rios, nos açudes mais traiçoeiros,
Nos arroios mais covardes, chegavam pra gurizada,
Como não querendo nada: "-Mas tchê, que baita calor!!"
O suficiente já era...
Em dez ou quinze minutos, meis dúzia de afogados
Pra aumentar sua coleção.

As palavras dos Caveiras
(Com suas sílabas ttraiõeiras)
Eram o engodo da morte.

Tantas feitas sucedidas com feições inusitadas...
Tantas coisas escondidas em histórias mal contada;
Os Caveiras eram praga pairando por esta terra;
Se já aprontavam na paz, se deliciavam na guerra.

Trinta e cinco foi assim, paraíso pra os Caveiras
Que ponteavam cada carga com suas freses derradeiras;
Noventa e três, tempos brabos...Eles chegaram gabolas...
Lavaram as caras brancas no sangue ruim das degolas!

E assim foi por tanto tempo...
Em cada revolução...
Em cada fio de vinhança
Do cornudo da ocasião.
Em cadavtrago de canha
Das peleias de bolicho,
Estavam sempre os Caveiras
Com seus medonhos cochichos.

Era o engodo da morte
Satisfazendo os caprichos.

Sei que a morte não é o fim,
Mas precisa ser assim?
Derrubados pelo engodo
Com palavras de festim?

Cadê a seqüência das coisas?
Cadê os ciclos naturais?
Pior que a morte de um filho
Só mesmo a dor de seus pais...
Não tem a mão do destino
Nessas piadas fatais!

Ouço uma voz murmurante acariciar meu ouvido,
Enleiando os pensamentos em cada duplo sentido...
Talvez me leve por diante, talvez me arraste no estribo.

Quem sabe são os Caveiras, sorrindo em suas caras brancas,
Trazendo o engogo da morte, cobrando a vida sem prazo...
Estranhos feito um palhaço dançando dentro de um vaso!

A culpa é tua

Se não estás aqui não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Não soube dos teus trancos e teus sonhos,
Nem lembro dos teus passos pelas ruas.

Não respirei teus medos e silêncios,
Nem tive o teu rosto em minhas mãos...
Não sei a dimensão dos teus momentos
Mas trago, a me levar, teu coração!

O nó da minha garganta desatou-se
Logo depois que tua voz calou-se...
Eu não sei onde nem por que razão.

Se não estás aqui, não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Se hoje sigo meus trancos e meus sonhos,
Se ainda gasto passos pelas ruas.

Te foste, mas ficaste, simplesmente,
Na minha vida, entregando mais que o bem;
Navegando no olhar de um outro alguém,
Que há pouco só mirava escuridão...
Te indago com espanto e com respeito:
Bem mais que o sangue pulsando no meu peito,
Qual o tamanho do teu coração?

Em algum canto, um pai, sem ar, em uma cama...
Em outro, as sombras de uma mãe em dissabor;
Os filhos pela volta, cabisbaixos,
Impotentes, mesmo tendo tanto amor.
Logo adiante, um piá contava as horas
Vendo seu sangue circular por um motor!

Daí a pouco, o terror de uma tragédia,
Uma vida que acabara sem querer;
A pior dor pesando a cruz de uma família,
Em seu calvário, carregado de sofrer...
Bendita luz de Deus, que nunca cega!
Pois a dor, em doação, se fez entrega
E dessa morte outros puderam renascer!

É o milagre da vida que veio através de ti,
Pelos frutos dessa entrega que semeaste por aí...
No pai que passa, risonho, trazendo o filho no colo,
Na mãe que enxerga suas crias brincando frente aos meus olhos...
No piá que corre faceiro, tenteando algum bem-te-vi!

O coração é um órgão
De carne e pulsação...
Que se transforma em poesia
No ato da doação.
Pois quando se doa um órgão
Se tem a exata medida
Que o amor que plantamos
É bem maior que esta vida.

Se não estás aqui não tenho culpa,
Mas se eu estou aqui, a culpa é tua!
Também por outros, com seus trancos e seus sonhos,
Também por outros, com seus passos pelas ruas.

Bendita seja a família que respeitou tua vontade...
Bendita história de alguém que soube amar de verdade
E entregou esse amor em forma de doação!
Te indago com espanto e com respeito:
Bem mais que o sangue pulsando no meu peito,
Qual o tamanho do teu coração?

"Redenção"

Domingo ensolarado neste outubro febril
Onde caminho sem pressa, despretenciosamente,
Ou melhor, com a mais singela pretensão
De quem, apesar de interiorano,
Se fez mais um semblante nesta imensa capital
E agora ruma, peito aberto, filha no colo,
Pra o coração verdejante do Parque da Redenção.

Dou uma volta no Brique, olhando as tralhas expostas,
Que se ofertam aos que cruzam,
Qual dançarinas de ontem em franca prostituíção,
Pois atrás de cada tralha, de cada móvel antigo,
Exiete um tempo perdido
Com nomes, rostos, vontades e desejos esquecidos,
Sendo aos pouquinhos, vendido
Sem pena nem compaixão.

Sol a pino nos judiando no passeio familiar...
A água quente do mate a muito deixou saudade,
E pra esta sede que invade, uma bebida gelada
Faz a alma refrescar.
Procuro na volta alguma placa ou painel
Com uma certa e inevitável inscrição em letras garrafais,
E também, inevitavelmente, a encontro em um carrinho,
Forma de lata, vermelho, parado na Redenção.

Num repente me secou a boca, muito mais que a sede,
Uma cena estranha que vidrou meus olhos
Na manhã de sol...

Junto ao carrinho de carcaça rubra
Um gaúcho sério marca sentinela, quase a meditar.
O olhar de potro, a feição trigueira e um ar saudoso
De buscar verdades muito além daqui...
A melena moura pelas geadas brabas
Que passou na vida;
Braços ainda firmes e um jeitão de taura,
Parecendo a eesência do Rio Grande antigo
Personificada nesta capital.

A bombacha gasta, par de botas velhas,
A guaiaca lisa e um chapéu surrado
De "guentar" tirão...
Lenço maragato meio desbotado,
Completando a estampa que figura o campo
Entre a multidão.

Quantos tombos feios já levou do mundo
Esse desgarrado?
Quantas lutas rudes já travou co'a sorte
Esse cidadão?
Pra que hoje quieto, junto ao monumento
Deste parque verde,
Empurre o carrinho a vender refresco
Pra população?

Analiso o rosto, não encontro réstia alguma de derrota,
Ao contrário, cada traço representa um jeito manso
De lidar co'a vida e de seguir adiante,
Pois apesar de exilado, é gaúcho sim, e dos buenos,
Daqueles que o tempo antigo talhou à mão
No mais puro cerne da dignidade...

Daqueles que a palavra dita vale mais que escritos
Com assinaturas e consentimentos de algum tabelião.

Chego ao seu costado, num instinto forte
De pontear conversa;
Peço u refresco, acarinho a filha
E puxo uma prosa qualquer:
E o tempo, e a vida, e a eleição?
Será que chove no correr dos dias?
Perguntas cheias de intenções vazias
Que o pensamento foi campear além...
Co o a perceber minha curiosidade,
Abre um sorriso de clarear a alma de qualquer cristão,
E me responde em palavras ricas
Às perguntas vagas, que por bem, lhe fiz:

-Acho que chove pela Quarta-feira,
O tempo vira sem mandar recado...
A vida é buena pra quem tem tutano,
Meu candidato vai ganhar no estado.

Cala então a voz, mas o sorriso fica
Estampado no semblante antes tão sério,
Como a desvendar todo o mistério
Que encontrei em sua aparição.
E agora entendo porque esse vivente,
Criado n'algum fundo do Rio Grande,
Se encontra no serviço de ambulante
Nos urbanos confins da Redenção.

Vem do campo sim, é missioneiro,
Conforme a cruz de quatro braços que carrega...
E a alma firme que não desassossega,
Nem frente aos vícios desta capital;

Traz horizontes dos varzedos largos,
Banhos de sanga, marcação, mangueira,
Timbres gravados pela vida inteira
Que ainda ostenta no jeitão bagual.

Outros rumos cruzaram seus caminhos,
Outros passos traçaram suas distâncias,
E quem já era valente nas estâncias
Mais valente precisou ficar...
Escasseou a lida campesina,
Escasseou o pão na própria mesa,
E pela fome, pela sua fereza,
Ganhou o horizonte a gauderiar.

Levou consigo os sonhos, esperanças
E toda a crença no valor do suor...
A cidade, porque não? Ainda existe,
Pois tem certeza que não há limites
Pra quem trabalha, e sem tombar, persiste
Seguindo as cores de um viver melhor.

Nem sempre o campo traz fartura aos filhos,
Nem sempre a querência é mãe zelosa...
E a miséria, por cruel e poderosa
Empurra os desgarrados mais adiante
Rastreando o seu lugar neste torrão;
Por isso é que encontro neste parque
Que habita o coração desta cidade,
A imagem de um gaúcho de verdade,
Altivo, na mais plena liberdade,
Pilchado, junto ao carro de bebidas,
Forjando a sua própria redenção!!!

Autores Gaúchos - Carlos Omar Villela Gomes



01. Rancho de Luz - Ângela Gomes e Ângelo Franco
02. Perfume - Juliana Spanavello
03. Revirando as Tralhas - César Passarinho
04. Volteadas - Marcelo Oliveira
05. De Quando eu era Velho - Vinícius Brum
06. A Coragem - Leo Almeida
07. Nas Ruas da Cidade - Eraci Rocha
08. Beliscando o Vento - Ângelo Franco e Piriska
09. Não mais que mais um dia - Ana Krüger
10. Beijo Amargo - Leo Almeida
11. O Silêncio - Flávio Hanssen
12. Sonho Antigo - Geraldo Trindade
13. Água no Fogão - Joca Martins e Fabiano Bacchieri
14. Além de Ti - Juliana Spanevello

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Quando o sol caiu

Quando o sol caiu não solucei,
Enchi o peito com o ar que ainda tinha
E pensando estar pensando não pensei.

Os laços e esperanças ramalharam,
As notas da guitarra se calaram
Em nome de um destino que eu herdei.

Quando sol caiu me desarmei...
Mirei sem desencanto o horizonte
Com olha de uma história que eu não sei.

A Terra se partiu num grande abismo
E à beira desse abismo eu me abanquei.

O choro retumbou nos meus ouvidos
No tom amplificado de um trovão;
Paralisando vozes e sentidos,
Gelando e incendiando o coração.

A lira, sem rituais, cortou os pulsos,
Lembrando de um amor que não provou;
E o poeta revisou seus absurdos
No sangue que a Lira derramou.

Quando sol caiu sequei o mate
Num último resquício de prazer...
Num último recado à solidão.
Não importavam mais os alambrados...
Nem o silêncio dos desesperados,
Nem o futuro me escondendo a mão.

Não havia pandorgas pelo céu
Nem cruzavam canoas pelos rios...
As potradas cessaram seus tropéis,
Tantos dedos negando seus anéis,
Tantas caras sorvendo seus estios.

A minha faca estava bem afiada,
Minha bombacha estava bem passada
E a minha alma estava por estar;
O sol beijou com sua boca quente,
Um gosto doce salivou no beijo
E nesse instante me encontrei em paz.

Quando o sol caiu, eu tinha febre,
Fazendo contraponto ao seu calor...
A pele do silêncio ficou leve
Tatuada com brasão de estranha cor.

Quando o sol caiu, também caí,
No abismo que eu costeava sem sentir...
No fundo desse caos que eu cavei,
Talvez um dia eu volte por ali...
Quando o sol caiu, eu renasci,
E ao lado do meu catre...
...despertei!

Hoje é um dia bom pra se morrer...

Hoje é um dia bom pra se morrer...

Pensou repentinamente, sentindo a alma nos olhos...
Assuntou consigo mesmo na paz da varanda antiga...
Segredou com o silêncio que lhe fazia costado.

Hoje é um dia bom pra se morrer...

Ruminou quieto ao balanço da cadeira
Que lembrava o trote de um cavalo manso
Recorrendo o céu dalguma sesmaria.

Levantou, mirou o dia,
Que contava histórias de um tempo velho
No murmulhar da sanga, no bailar dos pássaros,
No beijar do vento sobre as casuarinas...
Matizou de sol as pálidas retinas
E assistiu a paz lhe comover.
Hoje é um dia bom pra se morrer...

Virou-se para a porta da morada,
Buscando o vulto da mulher amada
Que nem a morte lhe fez esquecer.

Mirou os frutos de uma vida bem passada...
Os retratos de família sobre a estante
E o sorriso da flor tão adorada
Que aos poucos inundou o seu semblante.

Estava ali a estância bem cuidada...
A tropilha de mouros na mangueira,
Mil cabeças de boi nas invernadas,
E um suspiro, lembrando a vez primeira
Que um filho chorou de madrugada.

A filha, moça, preparando o mate,
O filho, homem, sua cara e jeito...
Um sentimento de missão cumprida
Coroando uma vida em arremate.

Eram os sonhos, sim, eternizados
Junto à saudade de quem já partiu...
Deixando amor e uma cruz plantada
Feito dois braços acenando ao rio.

Hoje é um dia bom pra se morrer...

Fechou os olhos, num suspiro doce...

Já tem os filhos criados,
Não deve nada a ninguém...
E já provou, pela vida,
De tudo que a vida tem.

O cachorro, companheiro, de confiança,
Chega quieto e lambe a sua mão...
A alma singra mares de distância
Além do sol que incendeia a imensidão.
Sente as plumas dos anjos, revoando,
E uma canção divina ressoando
Na calmaria do seu coração.

Hoje é um dia bom pra se morrer...

Abriu então os olhos mansamente
E mirou, logo à sua frente,
Uma luz, que fez sua alma florescer...

Hoje é um dia bom pra se morrer,
Mas não é o dia ideal...
E saiu, puxando o neto num petiçote maceta...
Viver é bom, afinal!!!